Arrazoado sobre o filme
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3bouKeHjkuU
O documentário “O Vilarejo Rural de Extrema: Suas Histórias e as Plantas Medicinais“ é um registro simples das cousas que tinham para contar os anciãos do vilarejo rural, perto da cidadezinha de Congonhas do Norte, em Minas Gerais. Pessoas que viveram tempos difíceis, de pouco pasto, como diziam os velhos de antes dos tempos de mocidade dos que foram entrevistados.
O filme começa com um potente relato do Sr. Lindolvo, 87 anos, que lembra de seu tempo de menino quando não se tinha o que comer e compara com a fartura e a facilidade da vida de hoje, quando até as casas que não têm nada, têm feijão com arroz.
Outros gentis personagens, todos aparentados ao fundador do povoado, também rememoram seus tempos de moço e contam como tudo ficou mais fácil. Alguns nem sentem saudade, pela dificuldade daquela vida de lida, mas há sempre muito carinho no relato das lembranças daqueles tempos bons em que bastava fazer um chapéu de folhas de capeba para se proteger do sol na lavoura.
O vilarejo de Extrema foi criado por um erveiro muito devoto que abriu os lotes na enxada e dividiu os terrenos entre os moradores, conforme relatam os gentis octogenários nascidos na cidadezinha. Joaquim Candeias, o curandeiro e benzedor que abriu o mato e marcou a pedra fundamental do povoado com a devoção aos seus santos, fincou história ao redor de uma igrejinha consagrada a São Sebastião. Disseram os velhos que todos os dias ele saía de casa seguido por sua esposa para se ajoelhar na igreja e rezar o terço, o Salve Rainha e os Ofícios de Nossa Senhora, e que iluminava seus santos com um candeeiro de azeite do santíssimo - óleo de mamona - óleo sagrado, que também usava para aliviar os enfermos de seu povoado.
Joaquim era um lavrador milagreiro, sem formatura mas entendido das curas, e recebia gente de fora do vilarejo e de todo canto atrás de suas rezas. Fazia orações, benzeções de pasto, tirava mal olhado, curava picada de cobra e espinhela caída, sarava dor de cabeça e dor de dentes e receitava os remédios santos. Passou a tradição para a sobrinha, que prestava atenção nas rezas do tio e repetia até aprender.
O filme está dividido em duas partes. Primeira Parte: Suas Histórias, onde os personagens puxam pela memória como era se alimentar apenas do que se plantava. Couve, alface, mandioca brava de fazer farinha de vender, madeira de manaíba mansa (mandioca) para comer cozida, batata, feijão guandú, milho pra ralar e comer angú, sopa de banana verde, samambaia, tanchagem, chuchu, melado. E na Segunda Parte: Plantas Medicinais, os residentes de Extrema enumeram as plantas do mato que crescem no quintal e tem seus usos curativos. O final oferece uma parte educativa onde assistimos a uma roda de conversa em que as mulheres da região apresentam as plantas medicinais que trazem de suas casas e contam seus usos para a profissional técnica do projeto Contraponto.
É uma obra daquelas que o cinema nacional está devendo para o povo. Não por uma genialidade estética ou por uma proposta imagética inédita, tampouco por um primor técnico audiovisual. Mas pela verdade do registro desse Brasil Real contando um causo para o Brasil oficial, que já não escuta tão bem as coisas que importam.
O filme está disponível no Youtube, na página do Espaço Educacional Contraponto, idealizador e realizador do empreendimento que contou com apoio da Lei Aldir Blanc para ser concretizado.
Com o exposto resta um ponto de reflexão sobre o financiamento público da obra. Entendendo claramente o cenário brasileiro no âmbito dos projetos culturais e a necessidade de que haja fomento financeiro por parte do Estado para que iniciativas como esta se realizem, discuto uma questão anterior relativa ao entendimento de como se mantém a cultura popular e as tradições orais. Cabe analisar o conflito entre a manutenção da cultura popular, que pertence ao povo e apenas existe enquanto for genuinamente popular e a necessidade de patrocínio público para a sua dita “preservação”. Quando o Estado é o mantenedor de algum aspecto cultural de origem popular, e se torna o único veículo que a sustenta, este aspecto cultural tem sua propriedade transferida para o aval dos órgãos governamentais reguladores e incentivadores. Com o ato de submeter tal projeto para aprovação de uma banca técnica avaliadora que aprove o patrocínio, e posteriormente seu relatório de conclusão de projeto, a temática ali presente fica envolucrada na burocracia e ao alcance dos domínios da mão estatal.
Este filme oferece o vislumbre da verdade encontrada na memória da gente daquela terra, e depende de um uma camada técnica e outra camada financeira para existir, assim como a maioria das iniciativas culturais brasileiras, que vêm se tornando dependentes de financiamento público para sua realização. É certo que os meios que proporcionam a existência material do filme não chegam a macular a importância da peça filmográfica, mas pelo fato de o resultado que chega ao espectador ter sido patrocinado pelo Estado, a interação entre os personagens entrevistados com quem os assiste é uma experiência distinta do que é a cultura popular. O resultado é por princípio um registro, importantíssimo e profundamente relevante, mas que não pode ser considerado uma peça de preservação da cultura popular.
Sobre a natureza da cultura popular, o filme traz um exemplo do que é a transmissão oral genuína que permite que as tradições se perpetuem, a transmissão de boca a ouvido, apresentado quando a sobrinha de Joaquim Candeias rememora a forma com que aprendeu as rezas e bendições de seu tio. O aprendizado com o exemplo e repetição. Esta forma de transmissão de conhecimento é o que verdadeiramente mantém aquela tradição viva. Mesmo que surjam iniciativas como a do filme que busquem preservar a cultura popular na tentativa de garantir que as novas gerações tenham acesso aos conhecimento da terra, apenas será possível manter viva a cultura popular se as tradições vencerem o desgaste do tempo com a transmissão oral do conhecimento, de boca a ouvido, e a prática que dela provém marcando um comportamento que a repete e acrescenta. Não há outra maneira.
Há inúmeros exemplos e manifestações culturais que se tornaram dependentes da burocracia estatal e com isso deixaram de existir se transformando em outra coisa. Extrapolando os temas do filme, um exemplo que auxilia no entendimento deste ponto é a Festa de São João de Santo Amaro, na Bahia, uma das mais tradicionais do país. Nos últimos anos o Governo do Estado, por meio da Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado da Bahia (Bahiatursa), tem divulgado um edital de fomento para as prefeituras das cidades baianas receberem verbas para organização das festas juninas. As festas juninas chegaram ao Brasil no século XVI, com os portugueses, e jamais dependeram de verba estatal para sua execução. São um traço cultural fortíssimo que guarda profunda conexão com a cultura lusa, que tanto aportou ao nosso país. No entanto, em Santo Amaro, na Bahia, os tradicionais festejos passaram a depender do fomento da Bahiatursa. Esta situação se verifica com outras manifestações populares e em outros estados do Brasil. No ano em que não há patrocínio, não há festa. E isso é um retrato de como o financiamento cultural se apodera do fazer cultural.
Qualquer tentativa estatal de preservação de cultura jamais conseguirá atingir seu objetivo pelo fato de que o Estado não é o dono da cultura, e não tem o poder de preservá-la. Quando dinheiro público é o que possibilita um fazer cultural, o que se faz ali é uma representação inspirada na cultura, um espetáculo mimético, mas jamais Cultura em si. Da mesma forma atos pedagógicos que busquem ensinar cultura tradicional a futuras gerações também fogem do escopo do que faz a cultura existir. Uma iniciativa educacional externa consegue divulgar saberes, ampliar a propagação de informações sobre os saberes tradicionais, registrar estas informações, arquivá-las e etc. Mas não conseguirá atingir o cerne da tradição e interferir na transmissão do Conhecimento.
O que propaga a tradição e amplia a sua existência pelas eras é a forma de transmissão oral do conhecimento, e o que a mantém é o "comportamento adotado", que a replica e acrescenta, e não apenas a "escuta". A Tradição assim se consigna porque aquele que a mantém "vive-a". É uma forma de "viver e de morrer". E com as transformações sociais, intercâmbio entre nações, contato entre culturas diversas e o mundo moderno veloz e digital que nos cerca, a transmissão oral rareia e as novas gerações perdem a chance de aprender com os velhos a forma tradicional de viver.
O mistério que cerca o surgimento de uma Cultura segue selado, mas pelos séculos assistimos muitas culturas desaparecerem.
Em paralelo a estas questões aqui expostas, os espectadores podem assistir a belos registros da cultura popular, e este filme é um deles.
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